Entrevista

A Campanha de Acesso a Medicamentos (CAME) é uma unidade de Médicos Sem Fronteiras (MSF) que atua analisando e superando barreiras ao acesso a medicamentos, diagnósticos e vacinas, utilizando estratégias como produção de relatórios, petições, mobilizações, entre outras, tendo em vista não só resultados para nossos projetos, mas transformações que beneficiem as populações em geral. Els Torreele, diretora-geral da CAME, explica a trajetória da unidade, que completa 20 anos em 2019.

 


O QUE LEVOU MSF A CRIAR A CAME?

Começamos, há 20 anos, com base na observação de que as equipes médicas que trabalhavam em vários países não tinham as ferramentas certas para diagnosticar ou tratar adequadamente os pacientes. Ou sabiam que certos medicamentos novos existiam, mas não estavam disponíveis nos países onde trabalhamos — muitas vezes porque eram muito caros. Em alguns casos, conseguíamos oferecer o tratamento, mas ele não era adaptado às necessidades locais, como vacinas que exigem muitas injeções ou uma cadeia de frio complicada para sua conservação. Essas observações foram a base para dizer: podemos fazer melhor. A ciência e a tecnologia evoluíram muito; devemos ser capazes de desenvolver e encontrar tratamentos que atendam adequadamente às necessidades das pessoas que estamos tratando. Além disso, o preço não deve ser uma barreira.

QUAL ERA O CONTEXTO DO ACESSO A MEDICAMENTOS EM 1999, QUANDO A CAME SURGIU?

Logo antes, iniciou-se a disponibilização de medicamentos contra o HIV nos países ocidentais, em 1995. Na África subsaariana, as pessoas estavam morrendo, e o tratamento era de 10 mil dólares por pessoa por ano. Em dado momento, um pequeno grupo se reuniu para pensar em como mudar aquela realidade. Então, no começo de 1999, a CAME foi criada. Começaram a trabalhar tentando descobrir como reduzir o preço dos medicamentos contra a Aids, mas ainda não foi um esforço sistemático. No final do mesmo ano, MSF ganhou o prêmio Nobel da Paz, e o dinheiro acabou sendo investido nessa nova frente, o que fez com que a campanha ficasse muito maior.


QUAIS FORAM OS AVANÇOS PARA O ACESSO A MEDICAMENTOS NESSES 20 ANOS?

O fato de termos conseguido baixar o preço dos medicamentos contra a Aids de 10 mil dólares para algumas centenas de dólares por pessoa por ano foi uma grande vitória. Estima-se que 22 milhões de pessoas estejam vivas graças aos antirretrovirais diários. Também trabalhamos duro para reduzir o preço das vacinas contra o pneumococo. Mais recentemente, os medicamentos contra hepatite C começaram a ser vendidos a um preço absurdo, a mais de mil dólares por comprimido. Agora, podemos comprar para os países onde trabalhamos um tratamento combinado que custa, no total, 120 dólares. Mostrar que é possível fazer as coisas de maneira diferente é outro grande sucesso.

E O QUE NÃO MUDOU?

O problema da falta de acesso a medicamentos por conta dos preços é maior do que nunca. O preço de 120 dólares por tratamento de hepatite C, que, como MSF, podemos oferecer nos países onde trabalhamos, não está disponível na Europa ou nos Estados Unidos, onde as pessoas não têm acesso ao tratamento a menos que tenham um seguro de saúde muito bom. No passado, pensávamos que o acesso aos medicamentos era um problema das pessoas pobres, nos países pobres. Muitas soluções que criamos foram uma espécie de exceção que as pessoas estavam dispostas a conquistar pelos pobres. Você não muda as regras criando exceções; na verdade, você reforça a solidez delas. Produtos farmacêuticos precisam ser o resultado do esforço coletivo. E, de fato, são, porque governos gastam muito dinheiro em pesquisa. Entretanto, depois pagam, da mesma forma, altos preços pelos medicamentos, porque os investimentos públicos são usados pelas empresas farmacêuticas e vão para um sistema totalmente financeiro, que não é adequado para a saúde. Medicamentos não devem ser um luxo, não são produtos comuns. O fato de que agora está claro que isso é um problema global é uma enorme oportunidade de mudança.

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