Por que ainda tratamos essas doenças?
A falta de acesso a medicamentos e formas de prevenção continua sendo uma barreira para o controle e a erradicação de doenças
Com um esforço coletivo, a humanidade conseguiu erradicar a varíola em 1977. O anúncio oficial da Organização Mundial da Saúde (OMS) veio poucos anos depois, em 1980. Quase toda a população mundial foi imunizada e, sem novos casos que pudessem contaminar aqueles que por acaso não tivessem recebido a vacina, pela primeira vez na história seres humanos eliminavam uma doença infecciosa do mapa.
A vacinação é uma das formas mais eficazes de se prevenir a propagação de uma doença. Usando-se o vírus ou a bactéria que causam a enfermidade, é desenvolvida uma fórmula que, introduzida no organismo, simula de forma segura uma infecção. O corpo combate a doença e cria anticorpos contra ela. Tudo isso sem que a pessoa precise sofrer com os efeitos nocivos daquela doença e correr risco de morrer.
Em todo o mundo, estima-se que pelo menos 17% das doenças infecciosas são causadas por vetores. Entre elas, podemos listar as doenças de Chagas e do sono, a leishmaniose e a dengue. Por isso, o controle de vetores – que consiste em limitar a circulação de organismos, como mosquitos e outros insetos, que transmitem doenças – é outra prática eficaz. É o que se faz, por exemplo, em campanhas que visam eliminar focos de larvas de mosquitos em água parada ou matar os insetos adultos com uso de inseticidas.
Por último, o tratamento de doenças curáveis com medicamentos é também um meio de erradicá-las. Este é o objetivo, por exemplo, da parceria Stop-TB (“Pare a Tuberculose”, em inglês), com a qual Médicos Sem Fronteiras (MSF) trabalha para estabelecer passos e metas para a eliminação da tuberculose como um problema de saúde pública. Outro exemplo atual é a possibilidade de por fim à hepatite C com novos antivirais capazes de curar essa doença que atinge mais de 70 milhões de pessoas em todo o mundo.
Com tantas possibilidades que já existem para se eliminar várias doenças, seria justo imaginar que elas não existissem mais e que pudéssemos dedicar recursos de pesquisa e ajuda humanitária a problemas ainda sem solução. Mas, infelizmente, não é o que acontece. Apenas as duas últimas doenças mencionadas, hepatite C e tuberculose, causam cerca de 400 mil e 10 milhões de mortes por ano, respectivamente. Mortes que poderiam ter sido evitadas.
Consequência do colapso de sistemas de saúde
Mais da metade da atuação de MSF acontece em locais de instabilidade interna ou de conflito armado. Ao contrário do que se pode imaginar, em contextos como esses, não são os cuidados a feridos em combates que mais demandam o nosso trabalho: o resultado de um sistema de saúde colapsado é o que verdadeiramente sobrecarrega os hospitais durante crises humanitárias.
Uma das consequências mais duradouras da falência da oferta de saúde pública é o ressurgimento de doenças evitáveis por vacinas. Foi assim, por exemplo na eclosão de casos de difteria em países como o Iêmen, em 2017, e Bangladesh, em 2018. A doença havia sido erradicada do Iêmen em 1992 e a vacinação de rotina manteve as pessoas a salvo desse perigo potencialmente mortal por 25 anos. Marc Poncin, coordenador de emergência de MSF na cidade de Ibb em 2017, conta como foi lidar repentinamente com uma doença erradicada em quase todo o mundo. “Globalmente, o declínio da difteria nos últimos anos foi acompanhado por uma perda de conhecimentos concretos em relação ao seu tratamento. Para tratar a difteria, os pacientes precisam ser isolados e receber antibióticos e anti-toxinas. Mas o fornecimento global da anti-toxina, que é o aspecto mais importante do tratamento, é muito limitado e não existiam doses dela disponíveis no Iêmen”, resume.
No caso de Bangladesh, o surto da doença foi resultado de anos de exclusão da população rohingya do acesso à saúde. Perseguidos em Mianmar, os rohingyas não recebiam vacinas de rotina e, ao se verem obrigados a migrar para Bangladesh depois de uma onda de violência direcionada a eles, encontraram o cenário ideal para a eclosão de um surto como o que ocorreu. Além de chegarem sem imunização a um novo ambiente, se viram obrigados a viver em campos de refugiados superlotados, o que facilita muito a transmissão de doenças. Por isso, não é incomum que organizações humanitárias e de saúde, como MSF, façam grandes campanhas de vacinação em campos onde refugiados e deslocados internos são obrigados a se alojar de forma improvisada e sem espaço e condições adequadas.
Formas de prevenção
Entre as doenças que entram quase sempre nos calendários de imunização preventiva – ou mesmo em campanhas para a contenção de surtos já em andamento – está o sarampo. Conhecida há quase dois milênios, uma vacina foi desenvolvida para a doença na metade do século XX. Ainda assim, o sarampo continua sendo uma das maiores causas de mortes de crianças. Em maio de 2019, por exemplo, MSF organizou uma campanha de vacinação contra a doença que alcançou mais de 100 mil crianças no Chade. Porém, o aumento recente de casos de sarampo não está restrito a áreas onde a doença é endêmica; cada vez mais casos são registrados em países de renda média e alta. “Quando um surto eclode, todos estão convencidos [da importância da vacinação]. Então, as pessoas vêm para serem vacinadas e temos uma cobertura bastante alta. Quando as pessoas não veem a doença – e isso não acontece frequentemente nos países onde trabalhamos, mas sim na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo -, elas esquecem o risco. Se as pessoas não veem o risco da doença, não veem os benefícios da vacinação”, resume Myriam Henkens, coordenadora médica internacional de MSF.
Há ainda formas de evitar doenças ao controlar a proliferação dos seus vetores. Nesse sentido, nossas equipes de epidemiologistas e de água e saneamento têm um papel bastante importante (ver artigo na página 9). Além de atuar no combate de pontos de proliferação de larvas, MSF ajuda com medidas como a distribuição de mosquiteiros e, em alguns casos, da profilaxia da malária, especialmente para crianças. Também podem surgir estratégias inovadoras: antes de repassar o trabalho do controle da doença de Chagas para o Ministério da Saúde da Bolívia, no fim de 2016, MSF desenvolveu o projeto eMOCHA, que consistia em um sistema de informação centralizado que mapeava locais onde o besouro transmissor da doença (conhecido no Brasil como “barbeiro”) era encontrado. A participação da população era fundamental: por meio de mensagens de texto gratuitas, podiam indicar onde haviam visto um desses insetos, facilitando as ações de controle do vetor.
Preço como barreira da erradicação de doenças
Diversas doenças são negligenciadas pela indústria farmacêutica. Porém, há casos em que, depois de anos de espera por um tratamento mais eficaz ou com menos efeitos colaterais, finalmente é desenvolvido um medicamento adequado. O problema é que, não raras vezes, esses novos tratamentos chegam ao mercado com valores proibitivos. Dois casos atuais são muito ilustrativos sobre o peso que altos preços de medicamentos impõem na cura de indivíduos e na potencial erradicação da doença. São eles o tratamento da tuberculose e da hepatite C.
No caso da tuberculose, foi necessária uma espera de mais de 50 anos até que algo novo fosse desenvolvido, visando pacientes que sofrem com a forma resistente a medicamentos da doença. A bedaquilina mostra grande potencial de uso e pode substituir tratamentos extremamente longos e dolorosos. Entretanto, o preço cobrado pela empresa farmacêutica que a produz a torna inacessível para os pacientes e um obstáculo para que o tratamento mais moderno seja disponibilizado por sistemas de saúde nacionais e organizações médicas. Em casos como esses, o papel da Campanha de Acesso a medicamentos de MSF é fundamental. Mostrando que o medicamento foi desenvolvido a partir de contribuições de diferentes atores, inclusive MSF, passamos a exigir que a bedaquilina seja disponibilizada ao custo de 1 dólar por dia. Esse valor foi calculado de forma a ainda permitir uma margem de lucro à empresa. Manteremos a reivindicação até que o preço seja reduzido.
O mesmo acontece com o sofosbuvir, novo antiviral contra a hepatite C. Barreiras comerciais, que inviabilizam o desenvolvimento de medicamentos genéricos, impedem que milhares de pessoas tenham acesso a esse tratamento vital. Um estudo de pesquisadores da Universidade de São Paulo mostra que, depois que a patente do medicamento foi concedida no Brasil, houve um aumento de 1.421,5% por comprimido. No sul da Ucrânia, MSF tratou, desde 2017, 900 pacientes com antivirais genéricos, obtendo uma taxa de cura de 97%. Conhecendo a eficácia do novo tratamento em nossos projetos, continuaremos lutando para que todos que precisam possam fazer uso desse medicamento. Afinal, isso significa mais do que a cura de um paciente: é a chance de eliminar por completo uma doença que mata, por ano, quase meio milhão de pessoas.
Um esforço coletivo com ganho para todos
A erradicação de doenças não é algo simples. Porém, como mostrou o exemplo da varíola, é algo possível quando se realiza com um esforço coletivo. Em nosso trabalho diário em mais de 70 países, encontramos alguns dos contextos mais desoladores. No entanto, vemos também a mobilização de pais que andam por horas para chegar a um ponto de vacinação com seus filhos, como no Chade; comunidades que se mobilizam em mutirões para eliminar focos de proliferação de mosquitos em áreas onde não há acesso a serviços públicos por causa da violência, como em El Salvador; e pacientes que atravessam o país para ter finalmente acesso a um tratamento que trará a cura antes impensável para a hepatite C, como no Camboja. Assim, uma história de vida por vez, vamos escrevendo juntos um futuro que pode conter menos doenças contra as quais teremos que lutar.