Rota de fuga
Medo e violência são os companheiros de viagem de milhões de pessoas que deixam seus lares em busca de segurança
Nos últimos anos, milhares de pessoas têm decidido entrar em uma embarcação insegura e superlotada para fazer uma travessia de mais de 350 quilômetros pelo mar Mediterrâneo. Elas se submetem à fome, à sede e ao clima, muitas vezes molhadas pela água salgada e com a pele em contato com o combustível do barco, uma combinação que causa dolorosas queimaduras químicas. Cada vez com mais frequência, seus pedidos de ajuda são ignorados por outras embarcações no caminho ou seu barco é interceptado pela guarda costeira de países como a Líbia, que as leva de volta para a costa da África e as mantém arbitrariamente em centros de detenção. Se chegarem à Europa, ainda sofrerão com políticas criadas cada vez mais para fazer com que não sejam acolhidas, desrespeitando legislações internacionais para refugiados e solicitantes de asilo. E isso se não se afogarem no trajeto. Ninguém entraria nesse barco se permanecer em terra não fosse ainda mais insuportável.
Em 2017, segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), 68,5 milhões de pessoas foram deslocadas de suas casas à força. A maior parte tenta encontrar outro lugar onde viver dentro do mesmo país, mantendo alguma relação com suas raízes e cultura. Porém, 25,4 milhões tiveram que cruzar fronteiras em busca de segurança.
MIGRAÇÃO PELO MUNDO
Em maior ou menor medida, todos os cinco continentes experimentam as consequências das crises migratórias. Ainda que as longas jornadas ganhem mais visibilidade, são os países vizinhos que normalmente recebem aqueles que fogem de crises humanitárias. É o caso de Uganda, o maior anfitrião de refugiados do continente africano. Em situações complexas, é possível observar que um país ao mesmo tempo recebe refugiados e vê parte de sua população fugir. Foi o caso, no começo de 2019, de Camarões e da Nigéria. Depois de uma onda de violência na cidade de Rann, no nordeste nigeriano, mais de 35 mil pessoas cruzaram, em poucas semanas, a fronteira, acampando a céu aberto no extremo norte de Camarões. No mesmo período, camaroneses fugiam para o estado de Cross River, no sul da Nigéria, levados pela ameaça da violência no oeste de Camarões.
Na América Latina, a crise humanitária na Venezuela provoca o êxodo de milhares de pessoas para países como Colômbia e Brasil. Entre os venezuelanos atendidos por Médicos Sem Fronteiras (MSF) nos países fronteiriços, a escassez de comida e a falta de acesso a cuidados médicos são mencionadas como razão para terem deixado o país. Já da área conhecida como Triângulo Norte da América Central, que compreende El Salvador, Honduras e Guatemala, estima-se que a cada ano saiam meio milhão de pessoas rumo ao norte. São movidas por uma combinação de fatores, como ameaças de gangues, violência sexual e falta de oportunidades. Em seu caminho pelo México, são mais uma vez vítimas de violência e extorsão, caindo frequentemente nas mãos de organizações criminosas.
Embora a busca de asilo na Europa ganhe mais destaque, a guerra da Síria provocou um enorme êxodo, que foi sentido principalmente por Jordânia, Líbano e Turquia. O Líbano, sozinho, recebeu mais de 1,5 milhão de refugiados sírios, que representam, no momento, uma parcela superior a 25% da população em território libanês. Muitos sírios fugiram ainda para o Iraque, país também em guerra que viu grande parte de sua população deslocar-se internamente e para além de suas fronteiras (ver o depoimento do psiquiatra Felipe Lins na seção “Direto do Iraque”). Mais a leste, na Ásia, Bangladesh recebeu, a partir de agosto de 2017, no espaço de poucos meses, mais de 700 mil refugiados da minoria rohingya, que fugiam de uma onda de violência a eles direcionada em Mianmar.
Na pequena e isolada ilha de Nauru, país independente da Oceania, pessoas são detidas indefinidamente depois de serem interceptadas em barcos ao tentarem chegar à Austrália. O envio dos migrantes para Nauru é parte da política australiana de exportar a gestão de solicitantes de asilo que tentam chegar a seu território. O número de tentativas de suicídio no local é alarmante. A psiquiatra de MSF Carolyne César relata o que ouviu de seus pacientes, inclusive crianças. “Elas dizem claramente que preferem estar mortas a estar aqui”, contou Carolyne após o encerramento do projeto de MSF em Nauru, em outubro de 2018, por exigência do governo local.
ATENDENDO PESSOAS EM MOVIMENTO
Como em Nauru, as necessidades de suporte psicossocial são uma constante nos projetos de MSF que atendem migrantes. Muitas das pessoas presenciaram situações violentas e viram familiares serem mortos. Histórias como essas foram ouvidas diversas vezes pelas equipes de saúde mental de MSF nos campos de refugiados em Bangladesh. Em uma pesquisa feita com as pessoas que chegaram ao distrito de Cox’s Bazar, MSF estimou que ao menos 6.700 rohingyas foram mortos em Mianmar entre 25 de agosto e 24 de setembro de 2017. Para ajudá-las a encontrar formas de lidar com suas feridas psicológicas, até 31 de agosto de 2018 MSF havia realizado 10.212 consultas individuais de saúde mental e 18.358 sessões em grupo. A falta de perspectiva também afeta gravemente os migrantes. Na ilha de Lesbos, na Grécia, 9 mil pessoas estão retidas pela política de contenção de solicitantes de asilo. Equipes de MSF observaram, durante atividades de saúde mental com crianças, em 2018, que 25% delas se automutilaram, tentaram se matar ou tiveram pensamentos suicidas.
“Uma vez, sequestraram meu filho enquanto ele ia para a escola. Em troca, me pediram tanto dinheiro, que tive que vender todo o meu ouro. Não dá para viver na Líbia. Então, eu decidi fugir de barco. É preciso escolher entre morrer no mar ou morrer por causa de uma bala. Eu preferi o mar.”
Aida, 41 anos
Resgatada no mar Mediterrâneo por MSF em dezembro de 2018
Entre pacientes migrantes, MSF também encontra várias sobreviventes de violência sexual. Em um estudo feito pela organização nas rotas migratórias que cruzam o México, 31% das mulheres relatam ter sofrido esse tipo de violência durante a jornada. Além do apoio psicológico, MSF oferece cuidados de profilaxia pós-exposição para evitar doenças sexualmente transmissíveis.
Nos campos de refugiados e deslocados internos, a superlotação e as condições precárias de vida são fatores para o surgimento e o agravamento de doenças, como acontece em Nizi, no nordeste da República Democrática do Congo. “As condições de higiene são muitas vezes deploráveis: as latrinas são insuficientes, faltam mosquiteiros e as pessoas não têm proteção contra as intempéries”, resume o coordenador-geral de MSF na região, Moussa Ousman. As cerca de 10 mil pessoas que vivem no local há um ano sofrem principalmente de malária, diarreia, infecções respiratórias agudas e desnutrição. MSF está em Nizi desde abril de 2018, onde já ofereceu mais de 57 mil consultas.
Outro problema comum é a falta de imunização contra doenças facilmente evitáveis por vacinação. Somada à superlotação de acampamentos de refugiados e deslocados internos, a situação é especialmente propensa à eclosão de surtos de doenças. No campo de refugiados de Kario, no Sudão, onde vivem dezenas de milhares de sul-sudaneses, MSF inaugurou um hospital em julho de 2017 e, em dezembro do mesmo ano, vacinou mais de 19 mil crianças contra o sarampo.
E todas as necessidades de cuidados de saúde dos migrantes acabam por sobrecarregar o sistema de saúde do país que os recebe. Por isso, MSF trabalha para absorver parte desse impacto e também oferecer, quando é preciso, os mesmos serviços de saúde para a comunidade anfitriã. No Líbano e na Jordânia, por exemplo, MSF oferece, entre outros serviços, cuidados de doenças crônicas, como hipertensão e diabetes.
POLÍTICAS RESTRITIVAS PARA MIGRAÇÕES
No mês de março, completou três anos a assinatura do acordo entre a União Europeia (UE) e a Turquia com o objetivo de conter a entrada de migrantes no continente europeu. Não foi apenas com a Turquia que a UE fez acordos para terceirizar a gestão da crise de refugiados. O bloco também financia a Líbia, que, com sua guarda costeira, faz incursões no mar para evitar que pessoas atravessem o Mediterrâneo rumo à Europa. Esse acordo leva centenas de pessoas a serem presas arbitrariamente em centros de detenção, onde vivem em situação de superlotação e escassez de água e alimento.
Entre as medidas adotadas pela UE está ainda a criminalização da ajuda humanitária no mar Mediterrâneo, o que acabou, depois de uma série de pressões, levando ao encerramento de nossas atividades de busca e salvamento no mar.* Porém, políticas como essas não se limitam à Europa. A cooperação entre Austrália e Nauru, mencionada anteriormente, assim como a exigência de que MSF se retirasse dos centros de detenção nauruenses, onde prestava atendimento de saúde mental, são outros exemplos de políticas que visam isolar os migrantes e puni-los por buscarem segurança em outros países.
“Temos que encarar a realidade: políticas desumanas feitas para deter a migração não impedem as pessoas de se deslocarem. Essas políticas dão força a autoridades corruptas e gangues criminosas, que lucram com a vulnerabilidade das pessoas. Essas políticas criminalizam e jogam as pessoas vulneráveis nas mãos daqueles que as exploram implacavelmente.” Com essas palavras, a presidente internacional de MSF, Joanne Liu, expôs, no encontro do Pacto Global sobre Migração, o resultado do que a organização vê diariamente em seus projetos de atendimento a migrantes e refugiados. Em outras palavras, as políticas que criminalizam a migração, em última instância, acabam por matar pessoas que arriscaram tudo o que têm para tentar sobreviver.
“Refugiados nunca têm uma vida boa. É uma luta para conseguir comida e água. Viver em uma tenda de acampamento acaba com qualquer um. Mas é melhor do que viver com medo em casa, então eu vou ficar neste campo até morrer.”
Ramadhani, 26 anos
Refugiado burundinês atendido por MSF na Tanzânia em 2017
QUAL A DIFERENÇA ENTRE REFUGIADOS, SOLICITANTES DE ASILO E MIGRANTES?
Refugiados: apresentam definição específica no direito internacional. São pessoas que saíram de seus países de origem por evidente medo de perseguição, violação de direitos humanos e conflitos armados. Caso retornem, correm o risco de serem mortas. Por isso, recebem proteção internacional e passam a ter acesso à assistência dos países que as acolhem, do ACNUR e de outras organizações.
Solicitantes de asilo: aguardam que as autoridades dos sistemas de proteção e refúgio do país para onde fugiram avaliem seu pedido de serem reconhecidos como refugiados.
Migrantes: não apresentam definição no direito internacional. O termo costuma ser usado de maneira genérica para descrever pessoas que saíram de seus países de forma voluntária ou não. Entretanto, pela experiência de MSF, muitas vezes é difícil definir se o deslocamento é puramente voluntário, pois a busca de melhores oportunidades econômicas pode estar ligada a questões de segurança no país de origem.