Reféns em seu próprio país

De ataques a hospitais a surtos de doenças, a população do Iêmen se vê encurralada por uma sucessão de tragédias

Quase três anos se passaram desde o começo do conflito armado que continua a assolar o Iêmen. O sistema de saúde do país, que já sofria com a escassez de recursos, viu sua estrutura entrar em colapso. Nas 16 províncias mais povoadas do país, 1.900 entre as 3.507 instalações de saúde não são mais plenamente funcionais. No meio disso, encontra-se uma população vítima dos combates — que já deixaram mais de 8 mil mortos e 45 mil feridos — e de doenças evitáveis, que surgem com a falta dos serviços básicos, destruídos e abandonados durante a guerra.

Mães trazem seus filhos para uma clínica móvel em uma aldeia nos arredores da cidade de Yemini, Hodeidah

Foto: Rawan Shaif

O conflito, que começou como uma guerra civil, logo ganhou contornos internacionais. Uma coalizão liderada pela Arábia Saudita apoia o governo baseado em Aden, no sudoeste do país, contra forças lideradas pelos rebeldes Houthi, baseados em Sanaa, no noroeste. Todas as forças em luta cometem violações das regras do direito humanitário, que determinam a proteção de civis e de instalações de saúde. Os bombardeios aéreos, que se tornaram cada vez mais recorrentes em áreas civis, não apenas impedem que os feridos procurem atendimento médico imediato como danificam as poucas unidades de saúde ainda existentes. Como se não fosse o bastante, há um histórico de ataques a hospitais, inclusive a cinco instalações de Médicos Sem Fronteiras (MSF).

Consequências humanitárias

O Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) estima que, em uma população total de 27,4 milhões de pessoas, 20,7 milhões de iemenitas necessitem de ajuda humanitária ou de proteção. Entre eles, 17 milhões sofrem com a insegurança alimentar, agravada por bloqueios de importações impostos pela coalizão liderada pela Arábia Saudita em novembro de 2017. São homens, mulheres e crianças, em número equivalente a toda a população do estado do Rio de Janeiro, sofrendo com a má nutrição e, por isso, mais vulneráveis aos surtos de doenças que têm tornado ainda mais cruel o cenário da guerra no Iêmen.

O fechamento forçado das fronteiras afeta também a oferta de ajuda humanitária, com voos de organizações como MSF tendo sido proibidos de entrar ou deixar o país. Os deslocamentos dentro do país também foram afetados pelas intensas ofensivas lançadas no final de 2017. Isso dificulta, e frequentemente impede, que a ajuda chegue àqueles que mais precisam, muitas vezes em áreas remotas.

Outra consequência deletéria do conflito continuado e dos bloqueios comerciais é o aumento dos preços, que também afeta o acesso a cuidados médicos. O custo de alimentos e combustível cresceu vertiginosamente, o que se soma à alta do desemprego e à queda do valor da moeda local, o rial. Monia Khaled, supervisora de água e saneamento de MSF, vive com sua família em Sanaa e sente pessoalmente o problema. “Os preços dos alimentos aumentaram tanto que as pessoas não compram mais frutas, adquirindo somente o básico para alimentar suas famílias, e isso afeta diretamente sua saúde”, explica ela. Os medicamentos dos quais seus pais dependem e antes podiam ser comprados com facilidade estão esgotados e, quando finalmente encontrados, têm preços exorbitantes. Isso faz com que toda a renda familiar tenha de ser realocada. “Agora temos que guardar dinheiro para o caso de emergências, de modo que compramos apenas o que é estritamente necessário”, conta.

Conflitos no Iêmen

A crise, agravada pela guerra, afeta também os profissionais de saúde do Estado. Em agosto de 2016, os salários de 1,25 milhão de funcionários públicos pararam de ser pagos regularmente ou por completo, impactando aproximadamente 25% da população. Na tentativa de mitigar mais esse cruel aspecto do conflito, MSF está subsidiando com incentivos mais de mil funcionários do Ministério da Saúde que trabalham em hospitais apoiados pela organização. Entretanto, o número de funcionários não remunerados é muito maior. O impacto disso inclui deterioração da qualidade dos cuidados, instalações de saúde sendo fechadas ou recorrendo a sistemas de cobranças para continuarem funcionando, além de greves e outras consequências.

De novo, quem mais sofre é a população em geral. É o caso de Fatima, que buscou ajuda para seu filho Ishaq, de 18 meses de vida, em um centro de tratamento de cólera (CTC) mantido por MSF na província de Ibb. Ela esperou por três dias enquanto a criança passava mal antes de procurar ajuda na esperança de que ela melhorasse sozinha. “Não viemos no primeiro dia porque não tínhamos dinheiro para pagar pela viagem. Já havíamos pedido dinheiro emprestado a um vizinho para ir até a farmácia, então ninguém mais queria nos emprestar dinheiro. Mas meu marido conseguiu convencê-los”, explica Fatima. A vida de Ishaq é uma triste ilustração do atual cotidiano no Iêmen: além da cólera, ele já sofre de desnutrição aguda moderada e provavelmente não conseguirá seguir o tratamento porque os pais não têm dinheiro para levá-lo de tempos em tempos ao programa nutricional.

Surtos de doenças

Em áreas conflagradas por conflitos, não são raros os episódios de epidemias de doenças transmitidas pela falta de saneamento. No Iêmen, não tem sido diferente. O surto de cólera, que se disseminou por 21 das 22 províncias do país, começou em abril de 2017 e, embora estivesse em amplo declínio, ainda não era dado como encerrado em dezembro. Em seu auge, até agosto do ano passado, 575.249 casos foram registrados, e 2.025 mortes, confirmadas. Os profissionais de saúde do país, assim como nossas equipes, tiveram de correr para reidratar pacientes mais rápido do que a doença era capaz de desidratá-los. Não só foi a maior epidemia de cólera registrada no Iêmen como também a segunda maior da história moderna, ficando atrás apenas da ocorrida no Haiti em 2010.

“A guerra e o bloqueio em curso estão fazendo com que o sistema de saúde do Iêmen retroceda décadas”, afirma Marc Poncin, coordenador de emergência de MSF em Ibb

Em novembro de 2017, o país se viu ameaçado por outra doença evitável: a difteria. Até 4 de dezembro, 318 casos eram suspeitos e 28 mortes foram relatadas. Por ser facilmente evitada por meio de vacinação infantil de rotina, a difteria foi erradicada na maior parte dos países. Mesmo no Iêmen, o último caso registrado remontava a 1992. Como resume Marc Poncin, coordenador de emergência de MSF em Ibb, “a guerra e o bloqueio em curso estão fazendo com que o sistema de saúde do Iêmen retroceda décadas”. A quase erradicação da difteria no mundo traz um complicador adicional: ela acabou por se tornar uma doença esquecida e negligenciada, o que fez com que a antitoxina necessária para o tratamento parasse de ser fabricada em larga escala. Para combater o surto, MSF e a Organização Mundial da Saúde (OMS) adquiriram a maior parte da antitoxina ainda disponível no mundo.

Panorama

Como se não bastasse o cenário de caos desenhado pela guerra, a distribuição de ajuda humanitária foi severamente prejudicada pelo bloqueio que teve início em novembro de 2017. Posteriormente, alguns aviões e navios humanitários tiveram autorização de entrada, mas a proibição foi mantida para bens comerciais e combustível. Esse embargo continua castigando duramente os iemenitas, com aumentos estratosféricos de bens básicos e a imposição de restrições de movimento por causa do impacto no preço dos transportes. No final do mesmo mês, a situação, que já era volátil, voltou a recrudescer. Sanaa, centro comercial do país e cidade conhecida por seus centenários prédios de adobe que lhe renderam o título de patrimônio mundial da Unesco, voltou a presenciar combates nas ruas, e os bombardeios aéreos se intensificaram. Monia Khaled sintetiza o sentimento diante dos recentes desdobramentos: “Antes dos combates, eu era otimista de que os problemas estavam perto de acabar, que a guerra finalmente acabaria. Mas agora as coisas parecem ter piorado.” Uma triste e real perspectiva de uma crise que a comunidade internacional persiste em negligenciar.

Ataques a hospitais de MSF

O hospital Shiara, uma instalação apoiada por MSF no distrito de Razeh (Yemen do Norte), foi atingido por um projétil no norte do Iêmen em 10 de janeiro

Foto: MSF

Na tarde de 15 de agosto de 2016, a rotina incessante do hospital de MSF em Abs, noroeste do Iêmen, foi interrompida por um bombardeio. O ataque aéreo atingiu a sala de emergência, deixando 19 mortos, 24 feridos e cerca de 150 mil pessoas sem o maior hospital da região. Esse foi apenas um dos cincos ataques que atingiram instalações da organização no Iêmen. No mais recente deles, em dezembro de 2017, o hospital Al Gamhouri, em Hajjah, teve o centro cirúrgico e a sala de terapia intensiva danificados, forçando a retirada de 12 pacientes de emergência.

Em uma de suas facetas mais perversas, as repetidas agressões a unidades médicas ultrapassam o perigo real das baixas durante os bombardeios. Depois do ataque à clínica de Al-Houban, na manhã de 2 de dezembro de 2015, MSF se viu obrigada a fechar a instalação por pressão da própria população local, que acreditava que o ataque fora causado pela presença da organização no lugar. O mesmo foi observado em outras instalações de saúde.

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