Esquecidas à própria sorte
Um bilhão de pessoas no mundo são afetadas por doenças que não recebem atenção
Doenças tropicais negligenciadas (DTNs) são um grupo de doenças recorrentes na África, na Ásia e na América Latina que costumam atingir em especial a população mais pobre. Afetam 1 bilhão de pessoas em 149 países, sendo metade delas crianças. Estima-se que causem entre 500 mil e 1 milhão de mortes por ano. Como o nome já deixa entender, não são prioridade para atores que poderiam fazer a diferença no desenvolvimento de novas formas de diagnóstico, terapia e cura.
Um estudo de Médicos Sem Fronteiras (MSF) apontou que, entre 1975 e 2004, 1.556 novos medicamentos foram criados; apenas 18 para doenças tropicais negligenciadas. A falta de interesse na pesquisa e desenvolvimento de fármacos que não representam significativo retorno financeiro é um enorme entrave, mas não o único. O isolamento e a dificuldade de acesso por questões de segurança aos locais onde as doenças são mais comuns fazem com que frequentemente a triagem, o controle e o acompanhamento dos casos não sejam feitos de forma efetiva, o que limita o surgimento de novas pesquisas.
Atualmente, 20 categorias constam da lista de doenças tropicais negligenciadas produzida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) — ver boxe abaixo. Outras organizações ligadas à saúde acrescentam ainda nomes não contemplados na atual relação da OMS, como tuberculose e malária. Um consenso é que essas doenças tropicais negligenciadas podem agravar os sintomas de pessoas com tuberculose e malária e de portadores de HIV, diminuindo sua chance de vida. Tendo em vista que a incidência dessas três infecções é especialmente alta em países onde as doenças negligenciadas são originárias, um quadro ainda mais complexo e grave é apresentado.
ATUAÇÃO DE MSF
Reconhecendo a necessidade de mais atenção à pesquisa e desenvolvimento de novos tratamentos, MSF uniu-se a outros parceiros em todo o mundo para lançar a Iniciativa de Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi), estabelecida em 2003. “A Iniciativa surgiu para suprir as lacunas deixadas pela indústria farmacêutica, baseando-se nas necessidades de saúde pública; não no lucro”, define Michel Lotrowska, diretor regional da DNDi na América Latina. O trabalho tem um escopo amplo, que vai desde a identificação das brechas na oferta de tratamento, passando pelo desenvolvimento de novas alternativas até a garantia de entrega para os pacientes.
MSF tratou essas doenças em diferentes momentos de sua história e em diversos países, com especial atenção para quatro reconhecidas como as mais negligenciadas: leishmaniose visceral (também chamada calazar), tripanossomíase humana africana (mais conhecida como doença do sono), doença de Chagas e úlcera de Buruli. As duas primeiras são fatais se não tratadas, e a doença de Chagas causa complicações que também podem levar à morte. Em junho de 2017, MSF comemorou a inclusão do envenenamento por picada de cobra na lista da OMS.
Úlcera de Buruli
A úlcera de Buruli é uma infecção bacteriana que provoca primeiramente um nódulo na pele que pode progredir para uma ferida aberta e chegar a atingir ossos e músculos. A doença com frequência deixa deformidades permanentes, e a maior parte dos pacientes são crianças com menos de 15 anos de idade. É encontrada em mais de 30 países e permanece sendo uma das doenças negligenciadas menos estudadas. Até o momento, a forma de transmissão é desconhecida. Em Camarões, MSF trabalhou por 12 anos tratando casos de úlcera de Buruli até repassar o projeto, em 2014, para o Ministério da Saúde. Nesse período, atendeu uma média de 100 pacientes por ano e conseguiu melhorar métodos de diagnóstico e tratamento.
Doença de Chagas
O protozoário que causa a doença de Chagas está presente nas fezes do besouro conhecido popularmente no Brasil como “barbeiro”. A transmissão ocorre principalmente pelo contato de suas fezes com a ferida aberta na pele por sua picada ou no contato com olhos e boca.
Na fase aguda da doença, sintomas leves como lesões na pele e olhos irritados podem permitir o diagnóstico precoce. Nesses casos, os medicamentos alcançam uma taxa de cura de quase 100%. Entretanto, a capacidade de cura depois da entrada na fase crônica é bastante reduzida. Mais de 30% dos pacientes com doença de Chagas crônica sofrem de problemas cardíacos, e mais de 10% têm problemas digestivos, neurológicos ou desordens múltiplas de saúde. Somente 20% das pessoas afetadas por Chagas no mundo receberam o diagnóstico.
A doença é endêmica em 21 países da América Latina, e a OMS estima que entre 6 e 7 milhões de pessoas estejam infectadas em todo o mundo.
MSF começou a atuar em projetos de atenção a pacientes com doença de Chagas em 1999 e deu acesso a diagnóstico a mais de 110 mil pessoas; mais de 8 mil completaram o tratamento. A atuação de MSF no que diz respeito às doenças negligenciadas se dá também por relações institucionais com outros atores, como organizações científicas e governos. Isso inclui a doença de Chagas. “Mudar esse quadro de negligência requer políticas públicas integradas e protocolos claros para que se amplie o acesso ao diagnóstico e ao tratamento na atenção básica, no Brasil e em todos os países endêmicos”, explica Vitória Ramos, especialista em assuntos humanitários de MSF-Brasil. Aqui no país, MSF teve importante papel na pressão por avanços recentes do Ministério da Saúde, que aprovou, em outubro de 2018, o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas da Doença de Chagas.
Doença do sono
MSF é um dos principais responsáveis pelo suprimento e pela distribuição de medicamentos utilizados para combater a doença do sono no mundo. Ela afeta 36 países na África subsaariana e é transmitida pela picada da mosca tsé-tsé. Pode levar ao coma e, se não tratada, é fatal. Por muito tempo, o tratamento foi feito com um medicamento derivado do arsênico, que de tão tóxico leva à morte um a cada 20 pacientes. Um estudo encabeçado pela DNDi e iniciado em 2012 permitiu o desenvolvimento do novo medicamento fexinidazol, totalmente oral e sem graves efeitos colaterais. Seu uso foi aprovado em novembro de 2018, representando uma nova página no tratamento da doença do sono.
Leishmaniose visceral
Também chamada calazar, a leishmaniose visceral é uma doença transmitida pela picada do mosquito-palha e ataca o sistema imunológico. É quase sempre fatal se não tratada. No mundo, entre 50 mil e 90 mil pessoas contraem a doença anualmente; 70% delas são crianças com menos de 12 anos de idade. A coinfecção com o HIV é recorrente, uma vez que pessoas soropositivas são mais vulneráveis ao calazar. Em 2017, MSF tratou 7.200 pacientes com a doença.
Picada de cobra
O envenenamento por picada de cobra mata mais de 100 mil pessoas por ano, mais do que qualquer outra doença da lista de DTNs. A falta de testes para diagnóstico adequado e a ausência de treinamento para profissionais de saúde são ainda graves barreiras. Além disso, a falta de suprimento de soro antiofídico e o alto custo do tratamento são grandes obstáculos. “Um tratamento eficaz e de qualidade com soro antiofídico custa muitas vezes o que as pessoas ganham em um ano inteiro. Os altos preços significam que a maior parte das pessoas que são picadas opta por tratamentos com curandeiros antes de procurar um hospital”, conta Julien Potet, especialista da Campanha de Acesso a Medicamentos de MSF. Todos os anos, a organização trata gratuitamente mais de 2 mil vítimas de picada de cobra.
PERSPECTIVAS
Em 2015, aproximadamente 1 bilhão de pessoas receberam algum tipo de profilaxia química para pelo menos uma doença da lista. Isso significa um aumento de 36% em relação a 2011. Como estratégia para aumentar a visibilidade do problema, a OMS busca integrar o cuidado com doenças negligenciadas na agenda dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável para 2030. Além disso, até 2023, o objetivo da DNDi é entregar entre 16 e 18 novos tratamentos. O fexinidazol, novo medicamento para a doença do sono, foi o oitavo tratamento disponibilizado dentro dessa meta. Os sete entregues anteriormente incluem novas dosagens de um medicamento já conhecido para a doença de Chagas estipuladas especificamente para crianças e combinações inovadoras para o tratamento de calazar.
Tanto a falta de abastecimento contínuo dos medicamentos quanto os altos preços cobrados por eles representam um entrave para o acesso e a manutenção de tratamentos. Nesse cenário, a concessão de patentes de remédios vitais é um dos mecanismos que mantêm os pacientes separados do que poderia ser sua chance de cura ou qualidade de vida. No projeto de calazar em Bihar, na Índia, o custo do tratamento para MSF por paciente é de 450 dólares (cerca de 1.700 reais). Onde é patenteado, o mesmo tratamento pode custar cinco vezes mais, tornando sua distribuição insustentável para muitos ministérios da saúde pelo mundo. Não é possível aceitar que, nos casos em que os tratamentos de fato existem, vidas sejam mais uma vez negligenciadas.
DOENÇAS NEGLIGENCIADAS VERSUS PESSOAS NEGLIGENCIADAS
Enquanto as doenças negligenciadas não recebem atenção de forma geral, os pacientes negligenciados são afetados por doenças que podem ter diversos tratamentos à disposição. Isto é, algumas pessoas com a mesma doença recebem atendimento adequado, enquanto outras, não, pelo fato de estarem em contextos diferentes. O HIV/Aids, por exemplo, atinge de forma desproporcional habitantes do continente africano, tanto em número de pessoas infectadas pelo vírus quanto nos casos em que a doença chega a seu nível mais avançado. O mesmo ocorre em diferentes países no que diz respeito à hepatite C e ao acesso a seu tratamento mais eficaz, o sofosbuvir.
O QUE SÃO DOENÇAS NEGLIGENCIADAS?
São doenças que, por atingirem majoritariamente pessoas pobres e em países em desenvolvimento, não atraem a atenção da indústria farmacêutica, de governos e de organizações de pesquisa, que poderiam desenvolver novas formas de tratá-las e combatê-las.
LISTA DE DOENÇAS NEGLIGENCIADAS SEGUNDO A OMS
- Bouba (treponematoses endêmicas)
- Dengue e chikungunya
- Doença de Chagas
- Dracunculíase (infecção pelo verme-da-Guiné)
- Envenenamento por picada de cobra
- Equinococose
- Escabiose e outras ectoparasitoses
- Esquistossomose (bilharziose)
- Filariose linfática
- Helmintíases transmitidas pelo solo
- Hidrofobia (raiva)
- Infecções alimentares por trematódeos
- Leishmaniose visceral (calazar)
- Lepra (hanseníase)
- Micetoma, cromoblastomicose e outras micoses profundas
- Oncocercose (cegueira dos rios)
- Teníase/cisticercose
- Tracoma
- Tripanossomíase humana africana (doença do sono)
- Úlcera de Buruli