Do confinamento às migrações forçadas: o caso de El Salvador

Jean-François Véran

Em março de 2017, a Unidade Médica Brasileira (BRAMU) participou da fase exploratória do que é hoje um projeto de Médicos Sem Fronteiras (MSF) em desenvolvimento em El Salvador. No jargão de MSF, uma “explo” é uma visita inicial para determinar a oportunidade e a possibilidade de abrir um projeto. A atenção já havia se voltado para esse pequeno país de 6,3 milhões de habitantes em 2015 durante a realização da pesquisa “PAT (Population Assessment Tool) Transmigrantes” (Ferramenta de Acesso Populacional dos Transmigrantes, em tradução livre). Cerca de 500 mil pessoas cruzam a fronteira mexicana todos os anos e a pesquisa pretendia avaliar de forma quantitativa, por meio de um questionário aplicado nos pontos de atendimento de MSF, as barreiras de acesso à saúde, a exposição a violência e violência sexual e seu impacto sobre a saúde física e mental de migrantes centro-americanos ao longo da rota que atravessa o México rumo aos Estados Unidos.

A pesquisa mostrou que El Salvador tinha os índices regionais mais altos de exposição a violência. Dos migrantes desse país, 45,4% declararam ter perdido um membro da família nos últimos dois anos por causa da violência e 21,9% reportaram ter um familiar desaparecido e nunca encontrado. No mesmo período, 61,6% dos migrantes salvadorenhos entrevistados tinham recebido ameaças de morte. Com tão funesta estatística, não era de estranhar que os migrantes declarassem que fugir de seu país era questão de vida ou morte, muito mais que econômica. O relatório da pesquisa trazia como recomendação uma visita exploratória a El Salvador, o que foi feito em 2016.

A visita permitiu entender melhor o que acontecia no país. Entre golpes militares sucessivos e uma guerra civil terminada apenas em 1992, o país tem uma história recente de violência. A guerra entre as duas principais maras (gangues), a Salvatrucha e a Barrio 18, pelo controle dos territórios e do tráfico de drogas tomou conta do país nos anos 2000, com um cenário de corrupção generalizada. Encontramos uma capital sistematicamente dividida em zonas controladas pelas maras a partir da manutenção pelo terror de “fronteiras invisíveis”.

A ferramenta de cartografia social desenvolvida pela BRAMU, que consiste na produção de mapas participativos dos usos reais do espaço, tornou essas fronteiras mais visíveis. No bairro de Ayutuxtepeque, as crianças não podem mais frequentar a escola de seu setor e a população nem sequer tem acesso ao cemitério. Em Iberia, é impossível acessar o posto de saúde mais próximo. Um homem contou que o único jeito de encontrar sua mãe é em um shopping, “por causa da fronteira”. Os torneios de futebol da comunidade são reduzidos a alguns setores de mesma “ideologia territorial”.

Foi possível compreender que, para a população, sobretudo a mais jovem, a “escolha” se reduz entre o confinamento no bairro e arriscar-se nos caminhos também ultraviolentos da migração. Na viagem, 45% serão roubados com violência física, 12,6%, sequestrados, e muitos, torturados. Das mulheres, 10,7% serão sexualmente agredidas, bem como 4,4% dos homens. É por causa desse continuum de violência entre os bairros e as rotas de migração que MSF resolveu denunciar “uma crise humanitária esquecida” no Triângulo Norte da América Central.

Em janeiro de 2018, o governo dos Estados Unidos anunciou o fim do programa humanitário que garantiu por uma década a permanência de salvadorenhos no país. Com isso, cerca de 200 mil pessoas que viviam sob o status de proteção temporária serão obrigadas a retornar a El Salvador. Cabe dizer que a medida foi tomada sem que houvesse qualquer mudança de contexto no país centro-americano que justificasse a retirada da proteção. Em caso de deportações em massa, para onde retornarão aqueles que foram, em primeiro lugar, forçados a fugir?

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