Do cólera à COVID-19: 30 anos de caminhada
Ao completar três décadas no Brasil, MSF concentra ações na região Norte, a mesma onde desembarcou pela primeira vez no país.
Em 1991, quando uma epidemia de cólera chegou ao Brasil pela região amazônica e atingiu diversas comunidades ribeirinhas e aldeias indígenas — cuja distância dos centros urbanos e a falta de infraestrutura tornaram-nas ainda mais vulneráveis —, Médicos Sem Fronteiras (MSF) iniciou suas primeiras atividades no país.
Do desembarque na região Norte até hoje, a organização cresceu de maneira intensa e constante. Paralelamente à realização de projetos no Brasil, a abertura de um escritório no Rio de Janeiro contribuiu para que MSF ampliasse suas ações, captando recursos e recrutando profissionais brasileiros, o que veio a estreitar os laços com o país. Atualmente, cerca de 600 mil doadores colaboram com MSF-Brasil para que a organização responda a emergências e crises humanitárias em mais de 70 países. E, todos os anos, centenas de profissionais brasileiros se juntam a equipes de MSF em diversos países do mundo.
Ao longo dos anos, MSF se firmou como uma voz importante para que os brasileiros conheçam as inúmeras crises humanitárias que continuam acontecendo em todo o planeta. Além disso, consolidou-se como participante ativo das discussões referentes a temas fundamentais para a saúde no país, como o acesso a diagnósticos, medicamentos e vacinas. Essa legitimidade foi, em grande parte, construída em campo, junto dos pacientes, escrevendo com muito trabalho uma história que agora completa 30 anos.
Enfrentando o cólera
A epidemia de cólera que atingiu o Norte do Brasil, em 1991, chegou ao país pelo Peru e teve seu primeiro caso em Tabatinga, no Amazonas. Para se ter uma ideia da magnitude do problema, em julho daquele ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) registrou mais de 251 mil casos da doença na América Latina. O cólera é uma doença transmitida pela água e por alimentos contaminados, tendo como seus principais sintomas a diarreia e o vômito, que levam a uma desidratação potencialmente letal — por vezes, em questão de horas. Essa característica da doença dificulta seu enfrentamento quando o socorro não chega rapidamente. E foi exatamente esse aspecto que chamou a atenção de MSF. A organização percebeu que podia compartilhar seu conhecimento técnico, adquirido em epidemias anteriores, para melhorar a qualidade da resposta à doença na região amazônica do Brasil, especialmente em comunidades ribeirinhas e indígenas, mais distantes dos grandes centros e de instalações de saúde.
Diante disso, iniciou-se um projeto com treinamento de médicos, enfermeiros e agentes comunitários de saúde locais, para que aprendessem a manejar casos da doença, a identificá-la e a prestar os primeiros socorros. Nessa época, MSF tinha bases em Manaus, no Amazonas e em Belém e Santarém, no Pará, com profissionais de diversas nacionalidades indo às comunidades em barcos.
O enfermeiro e sanitarista brasileiro Mauro Nunes, que mais tarde se tornaria presidente de MSF-Brasil, foi um desses profissionais. Ele se lembra de ter treinado cerca de 300 agentes comunitários, de Tabatinga a Belém, incluindo indígenas da etnia Ticuna.
— O interior do Norte do Brasil estava desprotegido para enfrentar a doença. Fomos desafiados pela imensidão da Amazônia, com comunidades ribeirinhas distantes umas das outras. Não havia rede de suporte. Morria-se nos barcos a caminho da hospitalização. Então, MSF concluiu que era preciso treinar profissionais das comunidades ribeirinhas, para que soubessem fazer uma punção venosa e administrar soro, a fim de levar o paciente a tempo ao hospital — relatou.
Engajamento indígena
Os projetos em comunidades indígenas se estenderam por uma larga escala de tempo e território. Em 1993, a organização foi para Roraima. Dessa vez, o foco era o combate à malária, que atingia principalmente as etnias Yanomami e Macuxi. Segundo Joan Tubau, sociólogo espanhol que era coordenador de MSF no estado, a população ali era esparsa e tinha acesso precário a cuidados de saúde. Diante disso, MSF levou atendimento médico às comunidades e, assim como no projeto de cólera, optou pelo treinamento de profissionais locais, agregando a formação de microscopistas.
Jacir de Souza, hoje com mais de 70 anos, é uma das lideranças Macuxi que fizeram parte do projeto. Ele lembra o diálogo estabelecido com MSF quando a organização chegou à sua região.
— Tinha muita malária naquela época e acabou, acabou mesmo. Médicos Sem Fronteiras chegou à comunidade, nós explicamos a situação, eles nos entenderam e começamos a trabalhar juntos. Eles queriam ficar na vila, mas eu disse: “Se querem trabalhar com o povo indígena, tem que ser dentro da nossa comunidade” — lembra Jacir.
Em 2020, a história de Jacir voltou a se cruzar de maneira inesperada com a de MSF. Dessa vez, ele foi um dos pacientes em um hospital de campanha em Boa Vista, onde MSF atuou. Ali, recebeu tratamento para a COVID-19 e, felizmente, conseguiu se recuperar.
Ao lembrar a resposta à malária em Roraima, Joan Tubau destaca a relação com as comunidades e as lideranças indígenas e o engajamento nos projetos como os principais aspectos que contribuíram para o sucesso.
— Entendemos que o trabalho deveria ser com as comunidades, que eram altamente organizadas, social e politicamente. Então, treinamos uma rede de agentes indígenas, o que possibilitou que eles cuidassem, em grande parte, da própria saúde. Formamos na área Macuxi centenas de agentes de saúde e microscopistas, que fizeram com que a malária sumisse dali. A vontade que eles tinham de aprender e de se mobilizar era enorme. Com um povo engajado e ciente de sua realidade, a transformação foi brutal — diz ele. Por sinal, muitos dos microscopistas e agentes de saúde indígenas treinados por MSF continuam atuando em suas comunidades.
População excluída no RJ
Ainda nos anos 1990, MSF percebeu o potencial de melhoria na prestação de cuidados de saúde a populações excluídas, especialmente a moradores de áreas violentas e pessoas em situação de rua no Rio de Janeiro. Desenvolvido ao longo de mais de uma década, o trabalho ampliou a disponibilidade de assistência com a implantação de serviços de saúde em comunidades como Vigário Geral, Costa Barros, Marcílio Dias e no Complexo do Alemão, onde foi realizado o último projeto dessa etapa, encerrado no final de 2009.
Em muitas situações, MSF teve papel importante como elo entre a população e o poder público, estabelecendo canais de diálogo e permitindo que as unidades de saúde fossem efetivamente frequentadas. Outra preocupação foi envolver as comunidades locais, para que parte dos serviços pudessem continuar sendo prestados quando MSF não estivesse mais presente, deixando um legado. Paralelamente aos atendimentos, a organização desenvolveu um programa de educação em saúde para a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. A ação foi realizada em conjunto com o Ministério da Saúde e aconteceu em mais de 20 comunidades da cidade.
Outro eixo da atuação no Rio de Janeiro foi com a população em situação de rua, cujas condições eram ainda mais precárias do que a dos moradores de comunidades. Em 1993, crianças foram atendidas no primeiro projeto da organização na cidade. No início da década seguinte, MSF voltaria a realizar o trabalho nas ruas, mas atendendo também à população adulta e abarcando tanto cuidados médicos quanto cuidados de saúde mental.
Apoio pelo país
Além de atuar na região amazônica e no Rio de Janeiro, MSF realizou ações pontuais de emergência no Nordeste. Em junho de 2010, fortes enchentes atingiram Pernambuco e Alagoas, deixando milhares de casas destruídas. Equipes entraram em ação, oferecendo apoio psicológico às famílias desalojadas, distribuindo kits de higiene e trabalhando na melhoria das condições de água e saneamento.
No ano seguinte, o Rio de Janeiro também foi atingido por fortes chuvas, o que levou a organização a atuar novamente no estado. Profissionais de MSF foram até a Região Serrana, com psicólogos oferecendo treinamento para as equipes locais que estavam na linha de frente, atendendo às pessoas atingidas por enchentes e deslizamentos de terra.
Anos mais tarde, em 2015 e 2019, profissionais de saúde mental voltariam a trabalhar no apoio a psicólogos que atenderam às vítimas de duas grandes catástrofes socioambientais: o rompimento das barragens em Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais.
Migrantes e refugiados também têm mobilizado as ações de MSF no Brasil. Em outubro de 2011, a organização respondeu a uma crise humanitária envolvendo imigrantes haitianos na cidade de Tabatinga, no Amazonas — onde houve distribuição de itens de primeira necessidade e atividades de promoção de saúde.
Outro projeto foi iniciado no final de 2018 em Boa Vista, no trabalho de reforço ao sistema de saúde da capital de Roraima em razão da chegada de um grande número de migrantes e solicitantes de asilo vindos da Venezuela, projeto que permanece em atividade até hoje.
Dentro de casa, a maior crise
A parte mais intensa desses 30 anos de história, entretanto, está sendo vivida neste momento. A pandemia de COVID-19 chegou ao Brasil no início de 2020 e gerou uma mobilização sem precedentes de recursos e de profissionais de MSF no país.
Em abril do ano passado, começou a funcionar em São Paulo o primeiro projeto focado na resposta à doença, com atendimento a populações vulneráveis com dificuldades de acesso à saúde.
Gradualmente, o trabalho foi sendo expandido com outras iniciativas, acompanhando a evolução da doença pelo país. Até maio de 2021, centenas de profissionais de MSF já haviam atuado em dez estados brasileiros e em mais de 60 unidades de saúde. Alguns deles chegaram ao Brasil depois de já terem lidado com a pandemia em outros países, e muitos profissionais brasileiros com grande experiência internacional trabalharam em seu próprio país pela primeira vez.
Uma região onde nossa presença tem sido marcante é o Norte. Nosso projeto em Roraima continua ativo, oferecendo cuidados médicos gerais à população local, mas com atenção especial à evolução da COVID-19 no estado. Trabalhamos em Rondônia e estivemos no interior do Amazonas e em Manaus, apoiando o sobrecarregado sistema de saúde local em meio a duas ondas devastadoras da doença, em 2020 e no início de 2021. Além disso, MSF também está em cidades do Pará e Ceará, através do reforço da estrutura de saúde local, dos treinamentos para profissionais da linha de frente, da ampliação da capacidade de testagem e das ações de educação em saúde para as comunidades.
Apesar da passagem do tempo, parte da história é familiar. MSF volta a lidar no Brasil com uma doença potencialmente letal em uma região do país onde permanecem as dificuldades de acesso a cuidados de saúde para a população.
A mesma região onde, há 30 anos, tudo começou.
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Escritórios institucionais
Em 2006, a organização abriu um escritório institucional no Rio de Janeiro, que passou a desempenhar atividades que envolviam o recrutamento de profissionais e a captação de recursos financeiros para apoiar os projetos pelo mundo. No ano anterior, MSF já havia começado a recrutar profissionais brasileiros para atuar em outros países.
Em 2007, as atividades no país foram fortalecidas com a criação da Unidade Médica Brasileira, conhecida como Bramu (em inglês, Brazilian Medical Unit), que presta suporte técnico e apoio estratégico aos projetos de campo e aos escritórios de MSF na América Latina.
Além disso, MSF conseguiu, a partir das ações de comunicação no Brasil, sensibilizar a população a respeito das crises humanitárias internacionais. Paralelamente, a equipe de Relações Institucionais e Assuntos Humanitários ampliou o contato entre MSF e entidades da sociedade civil e órgãos governamentais, com o objetivo de contribuir para e influenciar a formulação de políticas públicas na área da saúde. Em 2019, MSF-Brasil abriu em São Paulo seu segundo escritório institucional no país.