Direto de Manaus
Andréa Chagas, psicóloga
Médicos Sem Fronteiras (MSF) iniciou seu trabalho no Brasil em 1991, na Amazônia, região com inúmeras dificuldades históricas no acesso à saúde e à educação. Trinta anos depois, retornamos ao mesmo Norte, mas em outro contexto: uma pandemia sem direcionamento efetivo e técnico-científico.
Em janeiro de 2021, MSF passou a oferecer apoio psicológico aos profissionais da linha de frente do Hospital 28 de Agosto e da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) José Rodrigues, em Manaus. Quando chegamos, a equipe de psicologia do hospital nos relatou a ausência de alguns recursos e o medo com que os pacientes viviam. A crise do oxigênio na capital amazonense havia gerado uma situação traumática.
O hospital estava lotado. Era impossível passar pelos rostos desesperados dos familiares sem se emocionar. Segundo contaram, “tudo era muito rápido. Uma pessoa chegava falando e pouco depois evoluía para óbito”. Trabalhadores nos relatavam uma carga horária de até 36 horas ininterruptas.
Em muitos dos projetos de MSF em resposta à COVID-19 no Brasil, nosso lugar é o de suporte. Completamos e potencializamos uma operação para que os profissionais de saúde possam realizar suas atividades com o maior apoio, parceria e dignidade possíveis. Nesse contexto, os protagonistas do cuidado são os trabalhadores do Sistema Único de Saúde (SUS).
Como venho de uma trajetória de 23 anos como psicóloga no SUS — e sentindo os efeitos do desmonte no desenvolvimento dessa política no Brasil —, eu me apresentava como uma companheira do SUS para a equipe. Essa identificação colaborou para a partilha, a confiança e a construção de um vínculo entre nós.
O dia a dia do trabalho no hospital era a combinação do belo encontro com esses profissionais — cheios de força e compromisso — com situações dificílimas de manejar, como a passagem de corpos das vítimas da COVID-19. Em alguns dias, conseguíamos saber quantos eram. Em outros, precisávamos perguntar aos maqueiros.
Quando finalizávamos nosso turno, havia sempre um movimento na porta do hospital. Era a solidariedade das pessoas oferecendo “uma merenda”. Outras se postavam em oração. Um movimento intenso de carros funerários. Aliás, as ruas vazias com funerárias lotadas imprimiam uma estranha paisagem. Parecia um cenário de filme. Mas era a vida real, e ela desafiava a dramaturgia. A vida real ainda é insuperável.
A UPA José Rodrigues, segundo espaço de nossas atividades, apresentava situações–limite similares à do hospital. A equipe dizia que nossa chegada “produziu esperança”, uma reafirmação do sentido de estar onde estávamos. O trabalho com aqueles profissionais mostrou que há uma interseção entre o SUS e MSF: a afirmação da dignidade de todas as vidas humanas.
Hoje, seguimos com o trabalho em saúde mental no Hospital 28 de Agosto. Os encontros, nesse período pandêmico, são de extrema intensidade, e as palavras não dão conta de descrever o vivido. Mas, mesmo com tanta dureza, a vida segue nos compensando. Ela tece afeto, para seguirmos com o compromisso ético de salvar vidas e trabalhar na construção de um mundo melhor para todos.