Susana de Deus - Diretora-geral de MSF-Brasil
Acabo de vir de mais um encontro com meus colegas diretores de Médicos Sem Fronteiras (MSF), em que discutimos políticas operacionais, orçamentos e segurança concernentes à presença da organização em cerca de 70 países. Entre outros países em condições críticas, falamos sobre o Iêmen, onde a população enfrenta uma crise nutricional que afeta mais de 1 milhão de crianças; sobre a Síria, que aparece com alguma regularidade na imprensa e que teve recentemente um ônibus atacado, com um número avultado de crianças mortas enquanto finalmente se evacuava uma população que estava em desespero, cercada há meses; e também sobre o Iraque, onde, neste momento, milhares de pessoas aflitas buscam algum refúgio de uma das frentes de combate mais complexas da história atual. No Oriente Médio, a população sofre nas mãos de atiradores furtivos no cume de prédios, bombardeios aéreos, armas químicas e minas, que mutilam mulheres e crianças em suas próprias casas ou quando ousam fugir a pé por caminhos que pensavam ser alternativos. E é essa mesma situação de insegurança que assola os civis que tem dissuadido a resposta humanitária independente, urgente e tão necessária de outros atores. Estamos aumentando nossas atividades nesses países de tal forma que hoje o Oriente Médio representa 21% de nossas operações. No ano 2013, o montante investido representava 13%.
No momento, temos farmácia, centro cirúrgico e cuidados intensivos instalados em caminhões no Iraque. Em alguns casos, nossos cirurgiões em Mossul quase não veem a luz do dia por trabalharem ininterruptamente. No país, chegam a nossas instalações adultos subnutridos em um estado que seria inacreditável alguns anos atrás. Escutei dois cirurgiões falarem sobre seu trabalho em uma das frentes de batalha que mais nos está preocupando. Ouvi sobre o desespero e a quantidade absurda de pessoas em fuga e morrendo em meio a uma situação que deixa as equipes entre a tristeza e a euforia com o ritmo no qual se trabalha para responder às emergências e salvar o máximo de vidas. Trouxeram-me, no entanto, alguma introspecção individual ao sugerirem a reflexão sobre a vida, e como é possível, ainda que em tamanha tragédia, encontrar um sentimento humano que nos arrebata mais do que qualquer outro: o amor.
Conta-nos nosso colega que, em uma sala, os cirurgiões analisavam a radiografia do cérebro de uma criança que tinha ali um metal resultante de um bombardeio. Sua mãe estava totalmente enfraquecida, assim como a criança, pois tinham vindo fugidos de uma longa viagem. Se, de início, o rosto apático do menino não demonstrava quaisquer reações, no final da consulta ele estava visivelmente apaixonado por uma de nossas colegas médicas. Dez anos de idade. O cirurgião italiano, de voz embargada, descrevia o desafio da situação, mas terminou sua fala dizendo que, talvez, em meio a toda aquela crueldade, aquela criança tenha se apaixonado pela primeira vez.