A escassez de vacinas reflete a escassez da solidariedade internacional
Felipe Carvalho, coordenador da Campanha de Acesso de Médicos Sem Fronteiras no Brasil
Felipe Carvalho, coordenador da Campanha de Acesso de Médicos Sem Fronteiras no Brasil
As notícias sobre a distribuição de vacinas de COVID-19 são em grande parte permeadas por termos como “nacionalismo das vacinas”, “diplomacia das vacinas”, “guerra das vacinas”, entre outros tantos, que associam o que deveria ser uma intervenção de saúde pública a um ambiente de disputas e jogo de interesses geopolíticos. O fato de os países disputarem a ferro e fogo as poucas doses de vacinas que hoje estão disponíveis acende um alerta não apenas sobre a escassez desses produtos essenciais e sobre as razões por trás disso, mas também sobre a falência da capacidade de cooperação multilateral em meio a crises globais.
No entanto, não foi por falta de tentativa. Em abril de 2020, foi lançada uma iniciativa chamada Acelerador de Acesso a Ferramentas para COVID-19 (ACT-A, na sigla em inglês), que é composta por governos, instituições de pesquisa, especialistas, agências internacionais e organizações da sociedade civil. Ele tem como missão atuar para garantir acesso a diagnósticos, vacinas e tratamentos, e fortalecer os sistemas de saúde. O componente do ACT-A dedicado às vacinas se chama Covax. Seu propósito é assegurar a compra e a distribuição de vacinas de forma equitativa entre os países. Para tanto, prevê mecanismos para que os governos juntem dinheiro e façam uma espécie de compra coletiva. Também prevê uma metodologia para distribuir as vacinas de forma equitativa entre os países, inclusive para aqueles que não têm condições financeiras de colocar esse dinheiro na conta do Covax.
Apesar de a governança do Covax não ser adequada (pois está nas mãos de uma organização filantrópica, e não de uma agência intergovernamental, como a Organização Mundial da Saúde, por exemplo), a cooperação proposta pelo mecanismo é essencial para que não haja disputa entre os países na compra de vacinas e também para fortalecer o poder de negociação junto às empresas farmacêuticas.
No entanto, o potencial do Covax ainda não se cumpriu. Médicos Sem Fronteiras (MSF) tem acompanhado o desenvolvimento desse mecanismo, inclusive participando ativamente de discussões internas como uma das organizações que representam a sociedade civil. Os números falam por si: a promessa do Covax é garantir que todos os países que participam do mecanismo (172, no total) consigam vacinar pelo menos 20% de suas populações, o que já ajudaria, na maior parte dos casos, a cobrir os públicos prioritários. Mas, até o momento, o Covax só consegue assegurar 3,3% de cobertura. Em números totais, o Covax espera obter e distribuir cerca de 2 bilhões de doses até o final de 2021, mas só distribuiu 40 milhões até abril. O Brasil, por exemplo, espera receber 42 milhões de doses do Covax, porém apenas 5 milhões chegaram ao país até o fim de abril.
O fato é que o Covax demorou para ser montado, e os países também demoraram para assumir compromissos financeiros com o mecanismo. Em paralelo, as empresas farmacêuticas foram fechando acordos com os países mais ricos, e as doses de vacina foram acabando. Agora que o Covax está de pé, a oferta de vacinas está limitada, os acordos firmados com o mecanismo estão sofrendo atrasos e alguns ainda são incertos. Isso significa que também faltou solidariedade da parte dos países mais ricos. Eles usaram sua força econômica para garantir o máximo de doses para si, em vez de garantir a compra dessas doses por meio do Covax, de modo a beneficiar todos os países.
Governos que agora têm vacinas em excesso deveriam urgentemente doá-las para o Covax. Já as empresas farmacêuticas, por sua vez, deveriam priorizar negociações com esse mecanismo, em vez de fazer acordos isolados com os países. A Pfizer, por exemplo, negociou apenas 2% de suas doses com o Covax. Acreditamos também que o Covax precisa atuar não apenas como um balcão de negócios, mas no estabelecimento de normas de transparência, preço acessível e transferência de tecnologia para que seus acordos com as empresas criem melhores condições para o abastecimento futuro de vacinas.