A normalização do sofrimento humano em Acapulco
Ana Paula Fernandez de Abreu
Ana Paula Fernandez de Abreu, psicóloga de Médicos Sem Fronteiras
Acapulco, no México, é a segunda cidade mais violenta do mundo, com uma taxa de 113,24 homicídios por cada 100 mil habitantes, segundo dados da organização não governamental mexicana Conselho Cidadão para a Segurança Pública e Justiça Penal A. C. Diferentemente de uma cidade que tenha passado por uma guerra, as ruas, os prédios e as casas estão inteiros. No entanto, ao entrar em contato com as pessoas com as quais trabalhamos, identificamos onde mora a devastação. Embora elas aparentem íntegras fisicamente em sua maioria, notam-se, em seus olhares, feridas profundas. O sentimento que impera é o medo.
O projeto de Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Acapulco iniciou suas atividades em um bairro chamado Colônia Jardim, grande e populoso, com cinco centros de saúde. A escolha do local se deu pelos altos índices de violência atrelados à ausência da oferta de serviços voltados para a saúde mental. Nosso objetivo ali, então, estava definido: levar atenção integral às vítimas de outras situações de violência e de violência sexual. Apesar de, inicialmente, haver grande procura por esses serviços, pouco tempo depois o projeto se deparou com uma grande queda do número de pessoas atendidas.
Em Colônia Jardim, assassinatos, sequestros, extorsão e troca de tiros são rotineiros. A violência ali está normalizada, e essa é a única forma que as pessoas encontram para continuar a viver. O medo impede a população de confiar uns nos outros, pois qualquer pessoa pode ser membro do crime organizado. Por isso, um dos grandes desafios do projeto foi ganhar a confiança das pessoas. Como expor a um profissional desconhecido a realidade de ter sido vítima de algum tipo de violência? O trabalho da equipe de promoção de saúde abriu caminho para termos acesso a nosso público-alvo. Um grupo composto por dois psicólogos sociais e seis agentes de saúde da própria comunidade realizou oficinas por meio das quais acessaram as necessidades das pessoas e começaram um trabalho de empoderamento comunitário. As pessoas, então, passaram a lutar pela recuperação de seu espaço físico — limpeza das ruas, iluminação, saneamento básico. Ao se sentirem capazes de mudar o entorno, encontraram coragem para falar de seus medos, suas dores e buscar apoio psicológico. A partir do monitoramento dos eventos de violência na cidade, detectaram-se outras áreas para as quais os mesmos serviços seriam necessários: os bairros de Zapata e Progresso. Como a falta de segurança dificulta o acesso tanto dos moradores quanto dos profissionais aos centros de saúde, MSF iniciou suas atividades no Hospital Geral, central aos dois bairros.
Um grupo especialmente vulnerável e sem acesso ao cuidado especializado é o de crianças. Em menos de um mês de atividades no Hospital Geral, mais de 20 crianças vítimas de abuso sexual foram atendidas. O acesso a essa população foi possível após a construção de um laço de confiança entre a equipe do estado e a de MSF. Eles entenderam que não estamos ali para apontar erros, mas para apoiar e auxiliar a melhorar os serviços. Estando aqui, percebemos um grande paradoxo: o trabalho com vítimas de outros tipos de violência fica em segundo plano se comparado a guerras e desastres naturais. Não tem o mesmo glamour, não gera as mesmas reações, muito embora lidemos, no campo da saúde mental, com sintomas também comumente presentes em vítimas de guerra, como ansiedade, depressão e estresse pós-traumático. O sofrimento é minimizado, quase que categorizado como suportável e inerente ao contexto. E é assim, tentando normalizar as brutalidades a que estão expostas, que tantas pessoas tentam continuar a viver. E não podemos permitir que a paisagem de cartão-postal se sobreponha a tantas necessidades não respondidas.