SOFRIMENTO SEM ALÍVIO

A República Centro-Africana é um dos países mais perigosos do mundo para a ajuda humanitária

A República Centro-Africana (RCA), como seu nome já diz, está localizada no meio do continente africano. Ainda assim, o país, que tem hoje 70% de seu território controlados por grupos armados, permanece à margem do interesse da opinião pública internacional.

Entre 2013 e 2014, a RCA mergulhou em uma guerra civil depois que o presidente, François Bozizé, foi deposto em março de 2013. O golpe levou a um conflito com níveis extremos de violência, liderada por uma coalizão de milícias do nordeste do país que ficou conhecida como Seleka. Sendo seus combatentes majoritariamente muçulmanos, o conflito logo ganhou contornos religiosos, com o surgimento de milícias cristãs, chamadas anti-Balaka. Esse grupo revidava com ataques igualmente violentos à população civil muçulmana. “Esse é um conflito étnico. O pai dos meus filhos é muçulmano. Se nós tivéssemos ficado, os anti-Balaka teriam nos matado.”, sintetizou Marie-Yvonne, moradora da cidade de Bria. Como resultado, os combates deixaram um número não conhecido — mas estimado em milhares — de mortos e obrigou cerca de 20% da população a se deslocar: 400 mil pessoas tiveram de deixar suas casas e buscar abrigo em outras áreas do país e 300 mil centro-africanos procuraram segurança nos países vizinhos.

República Centro-africana

Foto: Alexis Huguet

Depois do envio de uma operação de paz da ONU em abril de 2014 e uma nova eleição presidencial, o país experimentou anos de relativa tranquilidade. Entretanto, na segunda metade de 2016, disputas por controle de recursos terrestres e minerais levaram os antigos grupos opositores a novos conflitos violentos. O governo perdeu o controle de grande parte do território, e os novos interesses deixaram a configuração das milícias ainda mais difíceis de ser compreendidas: hoje, antigos integrantes do Seleka — agora conhecidos como ex-Seleka — estão unidos a facções anti-Balaka contra seus antigos companheiros.

É nesse contexto caótico que Médicos Sem Fronteiras (MSF) tenta levar atendimento médico a uma população castigada pela violência indiscriminada contra civis e com quase nenhum acesso a serviços básicos de saúde.

Em busca de qualquer refúgio

Os deslocamentos forçados criaram cenas com toques de surrealismo. O aeroporto de Mpoko, na capital, Bangui, perdeu sua função para abrigar milhares de pessoas em cascos de aviões abandonados e enferrujados. No auge do aglomerado humano, 100 mil pessoas viveram no local. Passamos a atender no acampamento improvisado com um hospital e clínicas. Apenas em janeiro de 2017, o acampamento improvisado foi oficialmente fechado.

Na onda de violência que começou no final de 2016 e tomou grandes proporções em 2017, o hospital de Batangafo tornou-se, em apenas 10 dias, o lar de mais de 10 mil pessoas. Como disse o coordenador do projeto nessa cidade, Carlos Francisco, “imagine como deve ser a situação quando as pessoas pensam que a única opção segura que lhes resta é um hospital, sabendo que nem mesmo os hospitais estão seguros”. A área da instalação médica chegou a acolher 16 mil pessoas.

Violência na República Centro-africana

Foto: Alexis Huguet

 

Em Bria, ocorreu algo semelhante. MSF viu de repente o terreno de seu hospital ser ocupado por milhares de pessoas, atraídas pela sensação de proteção dada pela instalação médica. Em setembro de 2017, mais de 2 mil pessoas — cristãos e muçulmanos — viviam no hospital.

Onda de violência

De um ano para cá, os ataques a hospitais, clínicas e profissionais de MSF se tornaram cada vez mais recorrentes no país. Em 24 de maio de 2017, um homem armado entrou no hospital de Bangassou e agrediu uma enfermeira pouco antes de capturar uma paciente e sua acompanhante. A equipe médica passou a noite dentro do complexo hospitalar, cercada por homens armados e sem saber o paradeiro das duas mulheres. Moradores da área relataram depois que os corpos das duas foram encontrados dentro do perímetro dos muros do hospital.

“A criança foi baleada nos braços da mãe em uma instalação médica: os dois lugares em que uma criança deveria estar mais segura.”, afirma Mia Hejdenber, coordenadora de projeto de MSF na RCA

O tratado de paz assinado pouco mais tarde, em 19 de junho de 2017, por autoridades do governo e diferentes grupos políticos e militares da RCA não trouxe qualquer tranquilidade ao país. Dois dias depois da assinatura, o conflito voltou a eclodir em Bria, com um tiroteio às seis da manhã. Às 9h30, 35 pessoas feridas já haviam dado entrada no hospital. No mesmo dia, equipes de MSF nas cidades de Bangassou e Alindao, distantes mais de 200 quilômetros entre si e de Bria, relataram também terem ouvido troca de tiros.

Foto: Josh Rosenstein/MSF

 

A violência crescente obrigou MSF a rever sua atuação no país. Em 2017, a organização teve de transformar quatro de seus 16 projetos médicos focados em cuidados de saúde para a população em geral em projetos para vítimas direta ou indiretamente afetadas por conflitos. Isso incluiu os projetos em Bangassou e Zemio.

Na área do hospital em Zemio, cidade no sudeste do país, 7 mil pessoas se alojaram em busca de abrigo. Foi lá, inclusive, onde ocorreu um ataque cruel que chocou nossas equipes. No dia 11 de julho de 2017, dois homens armados chegaram ao hospital e ameaçaram uma família. Ela se encontrava no local havia duas semanas, depois de chegar em busca de atendimento médico e não conseguir deixar a instalação pela insegurança na região. Na tentativa de se proteger, a mulher, que segurava seu bebê, e outros dois membros da família tentaram se esconder. Os homens atiraram em sua direção e atingiram a cabeça da criança, que morreu instantaneamente. “A criança foi baleada nos braços da mãe em uma instalação médica: os dois lugares em que uma criança deveria estar mais segura”, resumiu Mia Hejdenber, coordenadora de projeto de MSF na RCA.

 

mapa República Centro-africana

 

A violência atingiu também diretamente as equipes de organizações de ajuda. Além de casos como os citados da agressão à enfermeira, em Bangassou, e do cárcere privado dos profissionais de MSF no hospital de Zemio, na noite do assassinato do bebê, houve relatos de assaltos a mais de uma organização. As instalações, os veículos e as equipes de MSF sofreram, em 2017, uma média de três ataques a cada mês. A violência e a insegurança em Bangassou atingiram níveis tão alarmantes que MSF se viu obrigada a suspender suas atividades, retirando seus 58 profissionais do local e deixando sem a devida assistência quase meio milhão de pacientes que dependiam desse atendimento. “Deixar a população completamente abandonada é uma dolorosa admissão de que somos incapazes de trazer alívio humanitário para uma das mais graves crises humanitárias do mundo no momento por causa de ataques à nossa equipe”, lamentou Frederic Lai Manantsoa, diretor de MSF na RCA.

As maiores vítimas

A grande vítima desse conflito continua a ser a população civil. Relatos como o do paciente Anga, atendido no hospital de MSF em Bambari, dão uma remota ideia do enorme terror vivido pelos centro-africanos. “Quando eu estava deitado no chão, me protegendo do tiroteio, um homem se aproximou de mim, levantou minha cabeça e cortou minha garganta. Pensei que tinha morrido, mas parece que parte da minha garganta ficou a salvo e eu continuei respirando”, relatou.

Foto: Jeroen Oerlemans

Uma em cada cinco pessoas, em uma população de 4,6 milhões de habitantes, foi obrigada a abandonar sua casa em 2017. No final do mesmo ano, mais de 540 mil estavam refugiadas em outros países e mais de 600 mil tiveram que se deslocar dentro da RCA. A violência e o fluxo migratório perduram em 2018. Na fronteira sul do país, muitos dos milhares de pessoas que atravessaram o rio Ubangi em direção à República Democrática do Congo retornam constantemente à RCA para cuidar das plantações e casas que deixaram em seu país. Nesse trajeto, voltam a ser vítimas de ataques dos grupos armados que controlam a região. Em fevereiro deste ano, no noroeste da RCA, MSF atendeu no hospital de Bossangoa mulheres que haviam sido emboscadas e estupradas por homens de um grupo armado enquanto lavavam roupa. Por causa do estigma da violação, acredita-se que muitas não tenham sequer pedido ajuda.

A invisibilização das vítimas de uma das maiores crises humanitárias do momento é chocante. Com a insegurança do país, a ajuda humanitária, que poderia trazer algum alívio, torna-se cada vez mais escassa. E, assim, os habitantes da RCA vivem mais um ano de incertezas sobre o próprio destino e com medo de perder basicamente a única coisa que ainda lhes resta: a própria vida.

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