Refúgio e migração

quando o último recurso é sair

Guerras e conflitos, crises econômicas, perseguições e outras circunstâncias ameaçadoras, hoje, estima-se que 100 milhões* de pessoas foram forçadas a deixar suas casas ao redor do mundo, segundo a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR). Esse é o maior número já registrado na história. Desse total, cerca de 27,1 milhões* são refugiados, ou seja, pessoas que estão fora de seu país de origem em decorrência de perseguição relacionada com questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a determinado grupo social ou opinião política, grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados.

Há mais de 50 anos, os profissionais de Médicos Sem Fronteiras (MSF) vêm testemunhando o sofrimento físico e emocional gerado pelos deslocamentos em decorrência de guerras, conflitos e outros fatores extremos. Trabalhamos ao redor do mundo para oferecer aos migrantes, refugiados e solicitantes de asilo os serviços de saúde e as assistências de que mais precisam, de apoio psicológico a tratamento nutricional vital.

“A maioria das pessoas com quem tive contato ao trabalhar em contextos de migração relatavam que tinham resistido até o último momento antes de tomar a decisão de sair do seu país. Para mim, isso quebrou a ideia de que algumas pessoas, mesmo em situações de conflitos e guerras, saíam, mas tinham alguma opção de ficar. Isso não é verdade para a maioria das pessoas com quem conversei; elas não queriam sair. Em algumas situações, preferiam ficar em seu país, mesmo em guerra, a migrar para um país onde a acolhida não era bem-feita e não estava estruturada”, relata Renata Santos, psicóloga e presidente do Conselho Administrativo de MSF-Brasil, que já atuou com populações em contextos de migração forçada em cinco dos projetos da organização.

SÍRIOS FORMAM O MAIOR GRUPO DE REFUGIADOS NO MUNDO
A Síria, país que está em guerra há 11 anos, tem o maior número de refugiados já registrados desde a Segunda Guerra Mundial: quase sete milhões de pessoas. Ao todo, mais de 13 milhões de sírios já foram forçados a deixar suas casas em busca de proteção em países vizinhos, como Líbano, Turquia e Jordânia. A população sofre um aumento das necessidades médico-humanitárias desde o início da guerra no país. A crise econômica, a perda de empregos como resultado da COVID-19 e o aumento dos preços dos alimentos agravaram a situação. Atualmente, 90% dos sírios vivem abaixo da linha de pobreza e mais de 80% estão em situação de insegurança alimentar. As equipes de MSF permanecem no país e em regiões vizinhas para oferecer assistência às vítimas desse cenário devastador.
“Quando falamos do sofrimento relacionado com a guerra, obviamente a primeira coisa que vem à cabeça é a violência que as pessoas sofrem ou testemunham durante o período em que ainda estão dentro da área de conflito, mas não podemos esquecer o próprio trajeto da migração e do refúgio, que pode ser muito perigoso também. Nele, as pessoas estão sujeitas a sofrer abusos, assaltos, tráfico humano, além de ter que fugir de uma situação ameaçadora da própria vida, estando expostas também ao frio, à fome e à incerteza”, relata Nádia Marini, psicóloga que atuou na Turquia com refugiados sírios.

GUERRA NA UCRÂNIA E NOSSA RESPOSTA
Mais de 5 milhões* de refugiados saíram da Ucrânia para países vizinhos desde que a guerra começou, em 24 de fevereiro de 2022, segundo o ACNUR, com o número aumentando diariamente. É a crise de refugiados mais rápida na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Bombardeios aéreos, cidades cercadas, destruição e grave escassez de alimentos, água e eletricidade têm afetado fortemente a população. As equipes de MSF na Ucrânia estão respondendo às necessidades das pessoas afetadas pelo conflito em áreas onde somos capazes de ser mais úteis.

Envio de suprimentos médicos de emergência, encaminhamentos de pacientes graves — porém estáveis — por trens-hospitais, treinamento de profissionais de saúde em atendimento de vítimas em massa e de trauma e apoio à saúde mental para pessoas que fugiram de áreas de combates mais ativos estão entre as atividades de MSF em resposta à guerra na Ucrânia. Nos países que fazem fronteira com a Ucrânia — e, em alguns casos, em ambos os lados da fronteira —, nossas equipes estão administrando clínicas que prestam assistência médica e apoio à saúde mental. Fizemos também doações de suprimentos médicos e estamos apoiando grupos locais da sociedade civil, treinando-os em atendimento psicológico de emergência, por exemplo.

CRISE HUMANITÁRIA NO AFEGANISTÃO
A crise humanitária no país é marcada por décadas de conflito, desastres naturais recorrentes, deslocamento interno generalizado, pobreza extrema e um sistema de saúde frágil. Os conflitos armados têm ceifado milhares de vidas civis todos os anos, enquanto prejudicam a infraestrutura pública. Os afegãos ainda lutam para ter acesso a cuidados médicos básicos e de emergência devido à insegurança, altos custos, falta de opções de transporte e do fato de que muitas unidades de saúde não têm a equipe e os equipamentos de que precisam. Mais de 2,6 milhões de pessoas foram forçadas a deixar suas casas apenas em 2021, segundo o ACNUR.
MSF realiza atividades médicas em cinco locais no país: Herat, Kandahar, Khost, Kunduz e Lashkar Gah. Entre as atividades da organização no país, estão a administração de centro de alimentação terapêutica para crianças com desnutrição, o atendimento para traumas às pessoas feridas pelo conflito recente ou em outros acidentes, serviços de saúde materna e neonatal, consultas ambulatoriais, entre outras.

CABO DELGADO, MOÇAMBIQUE: CONFLITOS GERAM ABUSO E SOFRIMENTO

CABO DELGADO © Igor Barbero/MSF

 

Ao norte de Moçambique, na província de Cabo Delgado, um conflito pouco conhecido, mas não menos mortífero, está em curso, resultando em abuso e sofrimento. Desde 2017, o país enfrenta um grave combate entre o exército e grupos armados não estatais. Agências da Organização das Nações Unidas (ONU) estimam que mais de 740 mil pessoas foram deslocadas de seus lares por causa da violência. Longe do fim, a crise humanitária deixou milhares em condições extremamente vulneráveis pelo deslocamento e pela falta de acesso a cuidados médicos, e as necessidades superam a atual resposta humanitária em campo. Além disso, Moçambique é um dos países com maior risco de desastres naturais, com ciclo anual de tempestades tropicais, o que também gera grandes deslocamentos.

MEDITERRÂNEO: ROTA DE MIGRAÇÃO MAIS MORTAL DO MUNDO
Todos os anos, milhares de pessoas fugindo de guerras, perseguições e vulnerabilidades em seus lugares de origem são forçadas a realizar viagens pelo Mediterrâneo. A grande maioria das pessoas passam pela Líbia, onde são expostas a níveis de violência extrema, incluindo sequestros, tortura, extorsão e detenção arbitrária, com sérias consequências para sua saúde física e mental. Desde 2014, mais de 23 mil pessoas morreram ou ficaram desaparecidas ao tentar essa perigosa travessia.

IÊMEN JÁ ENFRENTA SETE ANOS DE GUERRA
O conflito no Iêmen continua a ter enorme impacto sobre os civis no país, e milhares de pessoas precisam de ajuda humanitária. Os sete anos de guerra já causaram o deslocamento de milhares e comprometeram gravemente o acesso a cuidados de saúde essenciais. Os conflitos continuam a ter um impacto devastador no bem-estar das pessoas e, em particular, em sua saúde mental.

Pacientes com problemas de saúde mental no Iêmen não são diferentes de outros que vivenciam conflitos no mundo, mas 45% dos que atendemos na clínica de saúde mental de MSF no país apresentam casos graves. O percentual é surpreendentemente alto, principalmente levando-se em consideração que, em todo o mundo, e mesmo em ambientes de conflitos, o número de pacientes com problemas de saúde mental graves não deve ultrapassar 5,1% do total de casos, conforme definido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2019.

Trazer essa realidade ajuda muito a sociedade, porque um dos fatores que promovem a xenofobia é a falta de conhecimento. Escutamos casos de mulheres, por exemplo, que, mesmo sabendo dos riscos — algumas já foram vítimas de violências, inclusive sexual —, ainda assim decidem empreender essa jornada migratória extremamente arriscada, pois não têm condições de ficar onde estão. Saber disso nos ajuda a ter mais empatia e também a realmente exercer nosso papel de cidadãos, exigindo que haja um maior e melhor acolhimento institucional dessas pessoas que migram.

Renata Santos

AMÉRICA CENTRAL: EXPOSIÇÃO À VIOLÊNCIA EM SEUS PAÍSES E NAS ROTAS DE FUGA
Milhares de migrantes e solicitantes de asilo, em sua maioria vindos de Honduras, Guatemala, El Salvador, Venezuela, Haiti e Cuba, estão presos em condições extremamente vulneráveis ao norte e ao sul do México em razão das políticas de asilo ineficazes e das deportações em massa dos Estados Unidos. As equipes de MSF fornecem assistência médica a centenas de famílias tanto ao norte quanto ao sul do México. A maioria das pessoas que MSF atende deixaram seus países de origem por causa da violência e também foram vítimas de violência ao longo da rota de migração.

VENEZUELA: UMA DAS MAIORES CRISES MIGRATÓRIAS DO MUNDO
As tensões políticas e as dificuldades econômicas fizeram com que cerca de seis milhões de pessoas deixassem suas casas na Venezuela nos últimos anos. Essa é a continuação de uma das maiores crises migratórias do mundo. A maioria viaja para outros países da América do Sul, como Colômbia, Peru ou Chile. No Peru, milhares de pessoas chegam a cada semana, após empreender uma jornada de quase três mil quilômetros a partir de suas casas na Venezuela.

Roraima, no Brasil, é outro destino dos venezuelanos. Desde a reabertura parcial da fronteira entre os dois países, em julho de 2021, um número crescente de migrantes e solicitantes de asilo tem atravessado para o lado brasileiro. A maioria passa a viver na rua. Equipes de MSF presentes nas cidades de Pacaraima e Boa Vista têm testemunhado a falta de acesso dessas pessoas a cuidados de saúde e outros serviços básicos.

 

*Matéria atualizada no dia 20 de junho de 2022.

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