Direto do Haiti
Ana Bekenn, brasileira que atuou com MSF como coordenadora de recursos humanos de emergência no Haiti, fala sobre sua experiência no país, que vive uma escalada de violência.
Na minha primeira semana no Haiti, fomos parados numa barricada na estrada que ligava Les Cayes a Port-à-Piment. No carro onde eu estava, identificado com a logo de Médicos Sem Fronteiras (MSF), levávamos uma mãe com seu bebê de quatro meses de vida, que estavam sendo transferidos para o hospital. As barricadas eram feitas por manifestantes que protestavam contra a alta dos preços dos combustíveis, que não afetava apenas a capital, mas também o sul do país, num efeito cascata. Com o bebê de quatro meses dentro do carro, houve um rápido consenso. A ajuda médica falou mais alto, e em menos de cinco minutos nossa passagem foi liberada. Olhei para trás antes de virarmos a curva e vi os mesmos homens que nos liberaram colocando de volta os blocos de pedra para parar outros carros e motos. Na ocasião, isso me fez refletir se a situação a partir dali iria melhorar ou piorar no país. Esse episódio aconteceu em novembro de 2021.
Voltei ao Haiti em novembro de 2022, um ano depois. A situação no país, infelizmente, piorou — e em espiral, como relatam a mídia internacional e os próprios haitianos. Os eventos pareciam se acumular, num efeito dominó. Dessa vez, um surto de cólera tornou a condição para a população do Haiti ainda mais delicada.
Hoje, são poucas as organizações que continuam atuando no país. Afinal, a violência, a presença das gangues e os sequestros aumentaram. Um relatório alarmante da Organização das Nações Unidas (ONU) indicou que o número de homicídios, em 2022, aumentou 35,2%, em relação a 2021, com 2.183 vítimas registradas. Os sequestros mais que dobraram, passando de 664, em 2021, para 1.359, em 2022.
MSF, porém, permanece no país, atuando em diferentes regiões, não apenas em projetos que já existiam, mas, em alguns casos, até expandindo seu trabalho. O histórico de atividades médicas que a organização tem no país, desde 1991, ajuda no acesso a zonas violentas, mas obviamente MSF não é imune aos problemas. Em março, tivemos que fechar um hospital em Cité Soleil, uma comunidade na capital, Porto Príncipe, porque já não era mais possível garantir a segurança de profissionais e pacientes em meio a constantes tiroteios na região.
Uma das respostas de MSF ao surto de cólera que atingiu o país em setembro de 2022 foi a construção de um centro de tratamento em menos de dez dias, com capacidade de 150 leitos, no distrito de Carrefour. A equipe trabalhou unida e na mesma direção, sem descanso. Aprendi — na prática — que o cólera não espera.
O distrito de Carrefour não era um local onde MSF tinha um grande histórico de atividades. Mesmo assim, a comunidade nos acolheu. Conversamos com os moradores, que viram nossa experiência e compreenderam que nosso centro de tratamento não seria responsável por recontaminação pela doença ao tratá-la — ponto bastante sensível para a mesma população. Essa forma de se aproximar da comunidade e a rápida resposta dos diferentes setores da organização (médico, logístico, recursos humanos) permitiram que estivéssemos prontos durante o pico do surto em Carrefour e outras zonas. No início de novembro, o Centro de Tratamento de Cólera (CTC) já atendia com sua capacidade máxima. E, no mesmo mês, MSF era responsável por 60% dos leitos de cólera em todo o país.
Mas os desafios e as incertezas são grandes. A gestão da segurança de nossos profissionais deve ser minuciosamente monitorada. É um contexto dinâmico, ao qual estamos a cada dia buscando nos adaptar. Em janeiro, homens entraram num pequeno hospital em Carrefour a que MSF dava apoio, retiraram um paciente e o mataram a poucos metros do local. As atividades foram rapidamente suspensas, e novamente a população sofreu as consequências da ausência de serviços médicos.
Os meses em que trabalhei no Haiti durante o surto de cólera foram os dias mais desafiadores da minha jornada em MSF até aqui, numa lista que inclui um ano em Serra Leoa num hospital pediátrico, a resposta à COVID-19 em Manaus no ápice da pandemia e dois meses em Lviv, durante a guerra na Ucrânia. Confesso que as dificuldades de trabalhar com recursos humanos em Carrefour foram incomparáveis, porque a população que atendemos, e com quem trabalhamos em outros momentos, tem dificuldade em ver melhoras pela frente. O que me alivia, de certa forma, é olhar para trás, ver um centro de tratamento eficiente e compreender que, infelizmente, MSF tem motivos para estar lá.