A luta invisível por detrás dos equipamentos de proteção

Nádia Duarte Marini

Em quatro meses atuando como psicóloga e gestora de saúde mental nos projetos de Médicos Sem Fronteiras (MSF) no Amazonas e no Mato Grosso do Sul, vi alguns dos meus colegas médicos, enfermeiros e coordenadores de projeto se frustrarem por terem chegado após o pico de casos. Cada oportunidade perdida de salvar vidas foi vivida com desapontamento e luto por todos nós, ainda que cada pequena vitória nos desse forças para seguir.

Os problemas de saúde mental começaram a ficar mais evidentes conforme a curva da doença foi diminuindo. Pacientes que já haviam recebido alta voltavam aos hospitais sem compreender bem o que acontecia com eles, agora com ansiedade, medo e sintomas depressivos. Passado o pico mais grave de casos, também os profissionais da linha de frente do sistema público de saúde começaram a perceber o impacto emocional que a resposta à COVID-19 havia deixado neles. Vimos a necessidade de criar um suporte de saúde mental para esses trabalhadores, de modo que eles pudessem continuar seu trabalho tendo também um cuidado e um apoio psicológico para si.

Com uma equipe de quatro psicólogos, MSF ouviu e acolheu mais de 600 desses profissionais no Amazonas e no Mato Grosso do Sul. Alguns relatos me fizeram lembrar uma frente de guerra. Relatos assim eu só havia escutado dos refugiados sírios, quando trabalhei na fronteira da Turquia, com MSF, em 2016. Em vez da imagem de bombas e explosões, eram imagens de corpos em sacos pretos, vítimas da COVID-19, que vinham de forma invasiva à mente desses trabalhadores, no que se configura como um quadro de estresse pós-traumático.

A piora rápida de alguns pacientes e a alta taxa de mortalidade nas unidades de terapia intensiva (UTIs) geraram um sentimento de impotência perante a nova doença. O risco aumentado de contrair COVID-19 e o medo de contaminar a família também foram responsáveis pelo aumento desproporcional do estresse ocupacional e do sofrimento mental entre os profissionais.

Por detrás dos equipamentos de proteção individual (EPIs), foram muitos os trabalhadores enfrentando uma batalha invisível pela própria estabilidade emocional diante de tantas pressões.

Assistentes sociais e psicólogos do interior do Amazonas também tiveram de lidar com novas determinações geradas pelo surto da doença e pelas medidas sanitárias para contê-la. Transferências de avião para receber tratamento em outras cidades já era algo conhecido, mas devido ao medo de disseminação da COVID-19 os corpos de pessoas que morressem em decorrência da doença não poderiam ser retornados para a família para que fossem velados. Uma assistente social de São Gabriel da Cachoeira me relatou sua dificuldade de explicar aos familiares de um paciente que eles poderiam nunca mais vê-lo se ele fosse receber tratamento na capital, Manaus. Nenhum paciente transferido da cidade, que fica a quase mil quilômetros da UTI mais próxima, para a capital havia sobrevivido até então. Tudo isso tornava o processo do luto ainda mais difícil.

Em Aquidauana, no Mato Grosso do Sul, encontrei uma equipe de saúde desgastada pelo impacto do surto, mas menos traumatizada, já que não havia vivenciado o colapso do sistema. Enquanto outras regiões do Brasil enfrentaram um crescimento rápido do número de casos no segundo trimestre de 2020, Aquidauana teve um pico tardio, entre julho e agosto, graças a uma resposta rápida e coordenada das autoridades locais.

Essa diferença primordial entre os cenários observados nos dois estados mostra a importância de agir precocemente para o sistema não colapsar. Nos casos em que o colapso já estava instaurado, a ação de reforço desse sistema ajudou a preservar mais vidas e a saúde mental dos trabalhadores da linha de frente, tão preciosos nesse enfrentamento. Como principal lição aprendida, vimos que a onda de devastação psicológica deixada pela COVID-19 vai durar para além do período de infecção da doença e de surto epidemiológico. Para nós, da saúde mental, o trabalho está apenas começando.

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